Projeto treina crianças da Cracolândia para entrar no Bolshoi
Projeto social treina 7 crianças da Cracolândia para entrar no Bolshoi
Vaga em sede brasileira de escola russa é ‘sonho’ de professora há 4 anos.
Preparação já teve até encontro com bailarinos de corpo estadual de SP.
Mãos na boca tentavam abafar as interjeições. Antes de entrar na sala onde 32 bailarinos daSão Paulo Companhia de Dança ensaiavam, crianças de um projeto social da Cracolândia – a área no Centro de São Paulo conhecida por abrigar usuários de crack –, foram orientadas a manter um silêncio hospitalar. O encantamento em ver aqueles corpos definidos rodopiarem, e rodopiarem sem cair, era incontrolável e maiúsculo: “UAU. U-A-U”, sussurravam.
Ser plateia de um ensaio corriqueiro da companhia estadual serve, para o grupo, como um exercício de projeção. Há quatro anos, Joana Machado, professora do curso de balé do Cristolândia, projeto da igreja evangélica batista que atua na região central desde 2009, busca arrematar ao menos uma vaga na sede brasileira do balé Bolshoi, em Joinville (SC), no final do ano.
A conquista é uma das formas de provar que a dança é ferramenta de transformação – e pode ser profissão. Hoje, são mais de 500 crianças no projeto que frequentam não apenas o balé, mas diversas atividades.
A disputada seletiva anual do Bolshoi já foi pleiteada por algumas meninas, mas nenhuma foi aprovada. O motivo, segundo Joana, parece ser a falta de alongamento das garotas. “Foi o que me disseram no ano passado. Estou investindo bastante nisso com eles”, garante.
Este ano, o projeto levará o maior número de alunos para a prova que ocorre geralmente em outubro. Sete crianças participarão da disputa, sendo dois meninos e cinco meninas. “É um sonho emplacar. Se um passar, todos vão acreditar que é possível”, acredita a professora.
Para calibrar o sonho e ter ideia de como é a vida de um bailarino profissional, Yoshi Suzuki, de 26 anos, um dos principais nomes da companhia estadual de balé, deu uma aula na sede do projeto e levou um grupo de alunos para conhecer sua rotina.
Embora o jardim de entrada da Oficina Cultural Oswald de Andrade, onde fica a Companhia, proponha diversão – “Nossa, dá para brincar de pega-pega aqui”, dispara Vitória Beatriz de Oliveira, de 11 anos – o objetivo da visita não era recreação.
“O tráfico é muito fácil, a prostituição é muito fácil nessa região. Acreditamos muito nisso, de poder ser realmente uma bailarina profissional e ganhar o mundo através do balé. Eu fico emocionada, na expectativa”, afirma Joana.
Azul e rosa
No final de 2015, a turma deixou de ser exclusivamente feminina. Alunos do curso de jiu-jítsu do projeto perderam o medo e passaram a fazer balé. Bruno Nascimento, de 13 anos, deu o pliê inicial. Ele foi chamado pela professora para participar de um espetáculo do projeto em Santos, no litoral paulista.
Aceitou a proposta e ficou. “Convidei o Bruno porque precisava de um par para uma coreografia. Ele foi a primeira vez, gostou e trouxe outros com ele”, conta Joana.
Everton Monteiro dos Santos, de 9 anos, é um dos novos recrutas. Ele vive com a mãe, a avó e mais seis irmãos na Favela do Moinho, em Campos Elísios, no Centro. O pai, usuário de drogas, reside em outra região da cidade e tem pouco contato com a família.
Há mais de quatro anos no Cristolândia, ele sempre frequentou as aulas de luta. Tinha vontade de cursar balé, mas por vergonha não encarava a sapatilha. Agora, dá de ombros às piadas que escuta dos colegas. “Zoam muito, mas eu falo para os meus amigos que comigo não tem essa de preconceito não”, garante.
Fã de Anderson Silva, o garoto lutou com sono durante a aula que assistiu na São Paulo Companhia de Dança. Despertou animadíssimo ao ser convidado por uma das bailarinas para ser seu par. Ao final do ensaio, os profissionais fizeram uma atividade com as crianças. “É muito mais difícil que lutar”, analisou. Quer ser bailarino ou lutador? “Os dois”.
Acesso
O Cristolândia atua com crianças carentes da Cracolândia, não apenas descendentes de usuários de drogas. A proposta não é (só) lazer. É oferecer o esporte, a dança, também como passaporte. “Meu objetivo é dar aula e oportunidade para essas crianças venceram na vida através do balé. Ser formada é algo fora do imaginável para elas”, afirma a professora.
Com a visibilidade do projeto e do talento das crianças na mídia, alguns apoios surgiram. Uma das alunas chegou a ganhar bolsa de estudo em uma renomada escola de balé e em uma grande instituição de ensino, ambas particulares. Sem transporte, seguiu sem acesso.
Não pode frequentar nenhuma das duas porque não tinha quem a levasse às aulas. “Ela não tinha como ir. A mãe trabalha o dia todo, não tem parentes aqui. Acabou perdendo as duas bolsas”, explica Joana.
Este ano, o projeto conseguiu um patrocínio inédito para que dez alunas possam fazer o exame da Royal Academy of Dance, uma das maiores organizações de testes e treinamentos de professores de balé clássico no mundo. Cada prova custa, em média, R$ 600.
A avaliação, que ocorrerá em maio, tem feito a turma intensificar os treinos até aos sábados. No caso das crianças, após oito testes anuais com notas acima de 5, elas conseguem o diploma. “Em oito anos elas podem ter uma profissão. Com certeza vai ser algo de bom para a vida delas”, defende a professora, que também passará por avaliação da organização.
Pedido de socorro
Filha de ex-usuários de drogas, Joana deixou o interior da Bahia em 2009 para passar um mês no projeto, logo quando ele começou a ser implementado. “Meu pai foi preso 25 vezes, foi traficante de arma, de drogas. Minha mãe foi usuária. Tudo começa neles. Desde quando me conheço por gente, eles fazem esse trabalho de reinserção. Minha vida inteira vi meus pais fazendo isso e acredito no milagre, meus pais tiveram a vida transformada”, explica.
também busca arrebatar o diploma de bailarina
profissinal a partir deste ano
(Foto: Arquivo Pessoal )
A quatro meses do altar, e terminando o curso de enfermagem, Joana embarcou para acompanhar os pais, que são os coordenadores da Cristolândia em São Paulo. A experiência deixou de ser temporária, segundo ela, após conhecer a realidade infantil do bairro.
“Na época eu queria outra vida. Mas aqui eu fui quebrada. Encontrei uma criança de 12 anos que se prostituia por R$1. Ela me pediu socorro. Tinha sido violentada por quatro homens dentro da Cracolândia”, recorda.
Desde então, ela atua com crianças filhas de usuários, e oriundas de famílias que encontraram na desvalorização e estigma do bairro um aluguel acessível. Inicialmente, tentou oferecer aulas de hip-hop, modalidade que, à época, sabia dançar. Não teve adesão.
“Quando cheguei em São Paulo já tinha esse tipo de aula na praça, mas as crianças não participavam. Queria algo que não fosse acessível, que trouxesse graça, disciplina. Fui atrás de uma professora de balé, essa professora me deu uma bolsa e convidou dez crianças para participar.”
No próximo mês, ela também se submeterá ao teste da Royal. Fará o exame que corresponde ao 7° ano, o penúltimo antes de obter o diploma. “Eu presto pelo primeiro ano o exame. A partir do ano que vem posso ter o diploma. O balé transforma toda a tristeza dessa região em arte, alegria. E faz bem demais para as crianças. Essas meninas me veem como espelho e isso para mim é muito importante”, completa.