Instinto maternal na atualidade
Em entrevista à VISÃO, a terapeuta de bebés Constança Cordeiro Ferreira diz que “a maioria das mulheres acha que ter instinto é saber fazer tudo corretamente, acertar à primeira, não ter qualquer dúvida, ser perfeita!” Não as condena. O problema, defende, está nos “manuais de instruções” que hoje proliferam e “são verdadeiros atentados a tudo o que temos de instintivo”
Com o seu primeiro livro, sobre o mistério que é o sono das crianças, Constança Cordeiro Ferreira passou a ser conhecida como “a fada dos bebés”. Um ano depois, lança O livro de magia das mães (Ed. Matéria-Prima, 258 pág., 16,5€) focando-se na necessidade das mulheres aprenderem a cuidar melhor de si mesmas — e a confiarem mais no seu instinto — para também poderem cuidar melhor dos seus filhos.
Filha de uma enfermeira-parteira da Maternidade Alfredo da Costa, licenciou-se na área das Ciências da Comunicação mas a paixão pelo mundo dos recém-nascidos foi mais forte, levando-a a frequentar vários cursos, sobretudo na área do choro inconsolável, em Portugal e no estrangeiro. A terapeuta de bebés, que começou por ser doula e é também conselheira de aleitamento materno formada pela Organização Mundial de Saúde e Unicef, fundou o Centro do Bebé em Lisboa, onde acompanhou já centenas de casais a conquistarem «uma parentalidade feliz e confiante», através de uma abordagem que conjuga contributos da antropologia e das neurociências com uma perspetiva instintiva da maternidade.
Porquê falar de magia quando, para muitas mulheres, o pós-parto é um período tão pouco mágico, ao contrário da ideia-feita?
Por isso mesmo é que eu acho que temos de falar em magia. Há uma parte do meu trabalho que transcende o explicável. Às vezes é difícil traduzir por palavras o que acontece. Eu analiso, estudo, crio estratégias, mas a forma como isto resulta depois em cada caso é absolutamente individual. No fundo, falar de magia é falar daquilo que cada mulher, no seu percurso, ao desbloquear determinados recursos, consegue operar de extraordinário em si mesma e na relação com o seu bebé. Quando um bebé chora horas seguidas, toma medicamentos para as cólicas mas nada faz efeito, quando não aceita ser pousado na cama… são questões relacionais. Em cada bebé que chora insistentemente, sem que haja uma “causa física” aparente, há quase sempre um pedido de ajuda que precisa de ser escutado e atendido com a máxima empatia, respeito e compreensão. Porque quando atendemos a um pedido de ajuda, a necessidade deixa de ter que ser gritada. Ninguém grita desesperado por algo que já tem. E quando tudo isso é desbloqueado, quando vemos este bebé aceitar ser pousado na cama e ficar calmo… este trabalho, que tem de ser feito pelas mães, parece mágico, de facto.
Mas no fundo aquilo que a Constança está a chamar de “magia” não é apenas um regresso ao tempo em que se confiava mais no chamado “instinto maternal”? Com tantos “manuais de instruções” e cursos de preparação para a maternidade, as mulheres não ficaram mais inseguras?
O instinto é sempre um assunto complexo. Noventa por cento das mulheres que acompanho no pós-parto juram a pés juntos que não têm instinto maternal, porque há uma grande confusão sobre o que é o instinto. A maioria das mulheres acha que ter instinto é saber fazer tudo corretamente, acertar à primeira, não ter qualquer dúvida, ser perfeita! Mas isto não é culpa das mães, é culpa do marketing sobre o instinto materno. Tudo o que é vendido, como esses manuais de instruções altamente detalhados, e que apelam ao nosso lado racional e não mamífero, são verdadeiros atentados a tudo o que temos de instintivo. Dizer, por exemplo, que um bebé deve ser “ensinado” a dormir ficando a chorar sozinho… esta ideia de que dar resposta aos chamados do bebé, e que o contacto físico, o mimo, o colo, será prejudicial para a criança, tem raízes no início do século passado, quando era preciso que as mulheres fossem para as fábricas, e nos primórdios da psicanálise, em que se defendia que o contacto físico criava pessoas descontroladas. Procurou passar-se a ideia de que era melhor largar a cria o mais precocemente possível. E hoje sabemos que isto é um absurdo total, se há área que as neurociências mais estudaram é esta necessidade do bebé de ter conforto, carinho, cuidado, etc, nos primeiros meses de vida. E as mulheres sentem isso, sabem isso. Mas como não conseguem aplicar as regras de alguns especialistas ou de alguns manuais com aquela assépcia e aquela retidão, acham que não sabem ser mães e que não têm instinto. Ora o instinto não é nada disto.
E como se altera essa perceção?
Fiz muita pesquisa para este livro, nas áreas da antropologia, da biologia, da genética, e se há algo que não podemos esquecer é que foram as mães que cuidaram das suas crias ao longo dos últimos milhões de anos, sem qualquer manual de instruções sobre como fazê-lo, que permitiram a evolução humana e que hoje estejamos aqui a ter esta conversa. Estes mecanismos inatos, porque temos em nós esse sentimento que transcende tudo, que é o instinto de proteger e de cuidar, têm de ser mais valorizados. Não podemos chegar a 2016 e achar que toda a legião de mulheres que nos antecedeu sabia muito bem o que fazer mas que aquelas que vão ser mães agora têm de ser ensinadas… não faz sentido.
Mas a Constança também dá cursos de preparação para a maternidade, qual é a diferença?
As pessoas terem de comprar determinadas coisas, aprenderem determinadas coisas, é um modelo criado para gerar receita, e disso eu discordo. Agora, nos dias de hoje, em que vivemos isoladas, em gavetas, em que passamos 30 anos sem ver um recém-nascido, em que a aprendizagem comunitária do que é um bebé e do que é a maternidade já não existe, não podemos dizer a uma mulher, que é mãe pela primeira vez e que se sente naturalmente insegura, “não penses em nada e segue o teu instinto”. Pode ser arriscado, até porque ela vai fazer um percurso mais fragilizada, seguindo muitas vezes os primeiros conselhos que lhe dão (e há sempre alguém, cheio de certezas, à volta de uma mãe…). Estamos num momento paradoxal. Por isso acho que é preciso fazer uma preparação para o nascimento, sim.
E que tipo de preparação?
Uma preparação que seja capacitante e que permita à mulher fazer as suas escolhas de forma informada, que lhe permita fazer uma exploração emocional do que é a maternidade, para que perceba que recursos lhe vão ser úteis – a maioria das vezes são recursos internos. E uma preparação também para a vulnerabilidade. A preparação que se encontra nos tais “manuais de instruções” passa por leituras para termos certezas. E eu acho que o que faz falta é uma preparação para os momentos de hesitação e de insegurança, que vão existir, e como superar esses momentos de pausa com calma e sem conflito. É isso que procuro passar nos meus cursos e nos meus livros: “Calma, não é preciso saber sempre tudo.” Vamos prestar atenção: o que nos diz o instinto? Há uma conexão neuro-hormonal entre a mãe e o bebé que nos dá sempre óptimos indicadores: a sensação de perigo, ou que estará mais seguro em determinada posição. E depois podemos conjugar essa informação com o que nos diz a Ciência. Eu posso entender que o bebé ficaria melhor de barriga para baixo mas há evidência sólida de que é mais seguro deitar o bebé de barriga para cima. E o ideal será conjugar tudo isto, e ter o melhor dos dois mundos.
Foi esse isolamento de que falava, que se instalou na sociedade atual, que abriu caminho ao nascimento de uma nova profissão, a de doula, que veio ocupa o lugar deixado vago por essa rede informal de apoio que existia entre as mulheres, nas suas comunidades. Tendo também começado como doula, que importância atribui ao seu papel junto das mães?
O papel da doula é importantíssimo, é o papel mais profundo e básico na sua essência de estar ao lado de um ser humano num momento em que ele precisa de ajuda. É assim que eu vejo uma doula: não é uma especialista, não é uma técnica, é uma pessoa que está. De repente, já não havia isto. Ganharam mais visibilidade no acompanhamento dos partos, porque também se percebeu que as mulheres tinham partos melhores quando eram acompanhadas por alguém que ali estava, de forma quase invisível mas capacitadora da mulher. E depois o pós-parto foi fazendo o seu caminho. Quando comecei nessa área, há oito anos, era um pouco terra de ninguém, não existia. Era um caminho solitário, falava-se apenas um pouco de apoio à amamentação e eu continuo a entender que onde as doulas fazem mais falta é nesta fase. Assisto com alguma preocupação à vontade de se ser especialista em muitas coisas quando a simples presença continua a ser negligenciada.
E por vezes o que mais faz falta a um casal que acaba de ter um filho é ajuda nas coisas mais básicas. Que papel devem ter aí a família e os amigos mais próximos?
É fundamental olhar para os pais e não apenas para o bebé. Perceber que muitos não pedem mas precisam de ajuda nas tarefas domésticas. Há sempre roupa para passar a ferro, por exemplo. Ou podem apenas pegar no bebé ao colo durante uns minutos para a mãe ir tomar um banho. Ou perguntar “há quanto tempo não comes uma sopa?”. Muitos pais não se alimentam convenientemente. Eu quando vou a casa de alguém que acabou de ter um filho levo sempre comida: uma granola, um bolo.
Em vez de oferecer mais uma roupinha para o bebé, os amigos deviam levar comida nas suas visitas, é isso?
Sem dúvida. Nós em Portugal somos um bocadinho obcecados com comida — não se consegue organizar nada que não envolva comida, é sempre um café ou um almoço, um jantar — mas depois nunca levamos comida quando visitamos alguém. Esta é uma tradição que existe na minha família, vai-se para as “emergências” com comida na mão. Nos momentos difíceis ataco o fogão, quase como uma feiticeira, a tentar resolver os problemas com o amor que também colocamos no que fazemos.
As visitas no pós-parto também são frequentemente uma fonte adicional de stress para a mãe. Deviam ser mais limitadas?
Eu costumo dizer que as pessoas que nos visitam nessa altura deviam ser apenas aquelas com quem não nos importássemos de estar nuas. Porque a mulher precisa de estar à vontade, na toca, a nutrir o seu bebé, e a ser nutrida.
Este seu livro tem conselhos muito práticos mas nem sempre as recém-mamãs têm tempo disponível para a leitura. Que capítulo destacaria, aquele que todas as mães deviam mesmo ler?
Dependerá da situação de cada mulher mas eu diria que a terceira parte, sobre o equilíbrio das necessidades. Está cheio de estratégias práticas, com base na experiência do meu trabalho e da minha investigação, e que vão de encontro ao que o bebé precisa e está a pedir mas também ao que as mães precisam para estarem bem e descansadas, sem privação de sono, felizes.
Fonte: visao.sapo.pt