Infância digital: o perigo da desconexão com a vida
Como pais e educadores podem orientar suas condutas em relação ao uso de dispositivos digitais pelas crianças? Onde podem se ancorar de maneira segura e coerente para limitar o tempo de tela das crianças?
O uso precoce e excessivo da tecnologia é um fenômeno recente no cenário da infância. Pouco se conhece a respeito de suas consequências a médio e longo prazo. Por esta razão tem sido alvo de pesquisas e estudos para investigação dos impactos e repercussões sobre a dinâmica familiar, desenvolvimento, comportamento e aprendizado infantil.
Frente ao panorama da infância digital e o perigo da desconexão com a vida, me pus outro dia a imaginar como agiria com meus filhos se eles fossem pequenos hoje.
Foi como entrar num túnel do tempo e me ver no carro cantando para acalmar meu bebê sentado no banco traseiro durante longos trajetos, ou em uma sala de espera para a consulta médica contando histórias para ele, ou ainda na mesa do restaurante desenhando enquanto aguardávamos a refeição.
Havia tantas opções de nos divertirmos juntos que confesso que é difícil pensar na redução a uma apenas – um aparelho tecnológico. Hoje a pressão da sociedade, das relações interpessoais, da indústria do entretenimento e lazer, conduz ao reducionismo do mundo tecnológico.
De acordo com levantamento da Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações, hoje temos 242,1 milhões de linhas celulares em operação para uma população de 208,2 milhões de brasileiros (IBGE), o que comprova a incorporação da tecnologia na vida das pessoas e alerta quanto à dimensão da revolução social e complexidade dos tempos atuais.
Não há como voltar atrás nos avanços tecnológicos e na sua inserção em todas as esferas da vida moderna. Sua influência torna-se cada dia mais forte e sua utilização essencial para a sociedade.
Existem aspectos altamente positivos na análise desses novos tempos e outros ainda sombrios que levam a muitos questionamentos e evidências de efeitos nocivos.
O uso precoce e excessivo da tecnologia é um fenômeno recente no cenário da infância. Pouco se conhece a respeito de suas consequências a médio e longo prazo. Por esta razão tem sido alvo de pesquisas e estudos para investigação dos impactos e repercussões sobre a dinâmica familiar, desenvolvimento, comportamento e aprendizado infantil.
Hoje, com menos de 3 anos de idade, as crianças já sabem usar smartphones, brincam com tablets, jogam games, entretanto, poucas são capazes de amarrar os cadarços do tênis, pular corda, amarelinha, subir em árvores, etc.
Os vários gadgets tornaram-se uma extensão das mãos das crianças. Dedinhos cada vez menores deslizam pelas telas touchscreen e pelas teclas dos computadores, notebooks e controles remotos da TV.
Quais os efeitos da iniciação precoce ao mundo digital para a saúde física e psíquica das crianças? Quais as influências que essas tecnologias exercem no comportamento infantil durante a fase de formação e desenvolvimento? Quais os impactos das mudanças sociais para a cultura da infância?
O QUE MOSTRAM AS PESQUISAS
De acordo com a pesquisa TIC Kids online Brasil 2015 – feita com os pais de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos de idade, do universo de 29,7 milhões nesta faixa etária, 80% são usuárias da Internet. O uso diário é intenso, corresponde a 84%, sendo que 68% acessam a Internet mais de uma vez ao dia – um aumento em relação a levantamento de 2014.
Com relação à média de idade do primeiro acesso, 44% acessam até os 9 anos, sendo que o telefone celular se tornou o principal dispositivo de acesso a internet, seguido do computador de mesa e tablet. Dados que mostram diminuição do acesso por computador de mesa e crescimento do acesso por tablet em comparação com resultados anteriores.
A residência continua a se apresentar como o principal local de acesso à internet por crianças e adolescentes, seguido pela casa de outra pessoa, escola e lanhouses.
Segundo o estudo americano Zero to Eight: Children’s Media Use in America de 2013, publicado pelo Common Sense Media, que desenvolve estudos sobre o impacto da mídia e das novas tecnologias sobre as crianças, entre 2011 e 2013 o acesso a mídias móveis pelas crianças americanas estourou. Neste período o número de crianças menores de 8 anos com acesso a tablets quintuplicou pulando de 8% para 40%. Em 2013, 38% das crianças com menos de 2 anos utilizavam um gadget, ante 10% em 2011. Entre 2 a 4 anos a taxa subiu de 39% para 80% e entre 5 e 8 anos, de 52% para 83%.
As pesquisas demonstram que crianças e adolescentes têm acesso cada vez mais cedo ao mundo tecnológico e permanecem conectados por mais tempo. Trata-se de um fenômeno global.
O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS
Profissionais da área da saúde e educação alertam quanto aos efeitos que de alguma maneira têm sido relacionados ao uso precoce e abusivo das tecnologias digitais pelas crianças:
-Dificuldade de concentração
-Distúrbios do sono
-Obesidade
-Alterações da visão
-Riscos auditivos
-Disfunções posturais e articulares
-Dificuldades de socialização
-Atraso de aprendizagem
-Agressividade
-Bullying
-Radiação
-Dependência
De acordo com o Dr. Cristiano Nabuco de Abreu, psicólogo e coordenador do Grupo de Dependência Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, a situação é preocupante. Ele tem atendido casos de crianças viciadas em smartphones, videogames e tablets, incapazes de se relacionar sem ser virtualmente, de manter a concentração e até mesmo dar sequência a um raciocínio lógico.
Em sua experiência clínica, tem atendido casos de crianças com pouco mais de 2 anos de idade que não comem, nem vão para a cama se não tiverem o aparelho ao lado.
Por que pais e educadores devem ficar atentos ao acesso tecnológico precoce e abusivo?
O Dr. Abreu explica que o processo de amadurecimento cerebral é finalizado somente após os 21 anos. Ele adverte que
Existem operações mentais que precisam naturalmente ser feitas e o grau de estimulação de um tablet desrespeita essa ‘ecologia’, essa natureza de desencadeamento da lógica. Quanto mais a criança ficar exposta a tecnologia, piores serão suas funções cognitivas, como a memória e desenvolvimento da atenção.
Por que pais estão colocando crianças cada vez mais novas em frente às telas por períodos cada vez mais longos?
Quem faz essa pergunta é o Dr. Michael Rich – pediatra americano, que em resposta à preocupação de pais a respeito do preparo de seus filhos para a competição no mundo digital, esclarece que
As crianças aprendem muito rapidamente a navegar e a usar mídias de tela interativa, mais rapidamente do que os adultos, que precisam desaprender hábitos pré-digitais. A interface entre usuário e tela está se tornando cada vez mais intuitiva, o que torna ainda mais fácil para os nativos digitais a usarem.
Na visão do Dr. Rich, o tempo gasto com as mídias digitais pela criança está tomando o lugar de atividades mais importantes ao estímulo e desenvolvimento do cérebro infantil e impedindo que a criança vivencie um tempo de inatividade (tédio), necessário para a organização psicológica e a criatividade.
As telas estão roubando um tempo precioso da criança – o tempo do brincar, uma atividade fundamental para o desenvolvimento infantil em todos os aspectos, físico, emocional, cognitivo, social e espiritual.
O QUE AS CRIANÇAS NOS DIZEM
Considerando o cérebro da criança ainda em desenvolvimento perante a velocidade e variação de estímulos que o uso de dispositivos digitais provoca ao mesmo tempo, é importante frisar que cada etapa de desenvolvimento da criança exige elaboração e organização interna e que estímulos externos excessivos podem provocar desordem pela aceleração e/ou antecipação daquilo que a criança ainda não está pronta para vivenciar. A criança tem um limite de capacidade de absorção de sensações e estímulos.
Para a criança pequena é muito mais adequado e saudável receber estímulos naturais como ouvir o pai ou a mãe contando histórias. O trabalho em absorver a história é muito maior, exige que a criança construa suas próprias imagens, e faça conexões para atribuir significado ao que está ouvindo. Isso torna a criança mais ativa na situação em comparação com a passividade gerada pelo olhar fixo na tela, seja vendo um filme ou jogando.
Diante das telas, corpo e imaginação ficam inativos. As imagens estão prontas diante da criança, não deixando espaço para a imaginação criativa.
Outro aspecto a ser abordado é que as mídias de telas interativas têm sido fortemente usadas por adultos para promover distração nas crianças, ocupá-las, e mais do que isso, hoje são usadas como “chupetas eletrônicas” com o intuito de acalmá-las nas mais variadas situações do dia a dia – durante as refeições, para ir ao banheiro, adormecer mais facilmente, em passeios de carro, em salas de espera, restaurantes, procedimentos médicos etc. As crianças estão vivendo um estado de anestesiamento diante da vida real.
Julieta Jerusalinsky, psicanalista infantil, propõe importantes questionamentos quanto a este estado de alienação a que as crianças estão submetidas na atualidade, os quais devemos refletir:
– Que registro a criança vai fazer do próprio corpo se ela come olhando para a tela de um celular?
– Que apropriação do corpo a criança tem nessa situação ou em inúmeras outras onde ela é levada a fazer coisas do dia-a-dia de forma inconsciente, anestesiada, “distraída de si”, do que ela realmente está fazendo?
Sob o ponto de vista das relações sociais a Dra. Jerusalinsky observa que:
– Vivemos em tempos que podemos estar de corpo presente, mas psiquicamente ausente em relação àqueles que nos rodeiam. De corpo presente, mas sempre olhando para uma janela virtual, vamos nos situando como um sujeito “fora do espaço”.
– Os aparelhos emitem sequências sonoras, mas não conversam, não produzem uma matriz dialógica em que os lugares sejam subjetivados, eles oferecem fragmentariamente uma linguagem, mas não sustentam uma função. Emitir sequências sonoras é bem diferente de dar lugar a que o sujeito possa se representar na linguagem […] Para isso precisamos, pelo menos no início da vida, estar uns com os outros, e não com gadgets eletrônicos.
-Os pais e educadores se encontram com uma forma de transmissão das informações que não é mais mediada pelos adultos próximos. Na medida em que a criança tem acesso à internet, tem acesso a esta informação “desencarnada”, uma informação não mediada”.
Há um perigo muito grande nessa ausência de mediação. Máquinas “falam” com as crianças por horas todos os dias de maneira fria, impessoal, descontextualizada, desprovida das experiências vivenciadas dos adultos, sem a transmissão de valores culturais. A linguagem dos smartphones e tablets é uma linguagem de isolamento.
Refletindo sobre a influência dessa revolução digital que crianças já em tenra idade estão sofrendo, outras indagações podem ser levantadas: Que modelo do que é ser humano é oferecido às crianças de hoje? Uma vez que elas veem adultos conectados 24 horas, o que elas estão assimilando a cerca de como acontecem as relações humanas? O que é estar com o outro? Existe relação sem celular? Os dispositivos digitais necessariamente nos acompanham a todos os lugares e em todos os momentos?
A Dra. Jerusalinsky avalia a importância dos três primeiros anos de vida da criança como um “tempo primordial da constituição psíquica, fase que está em jogo a constituição de si, a apropriação do próprio corpo e a relação consigo mesmo, além do estabelecimento das relações com o outro”.
Diante de tantas dúvidas e incertezas percebe-se que há muitas peculiaridades nesses novos comportamentos que necessitam atenção e cuidado. Adultos e crianças estão sendo sugados para seus próprios mundos digitais. Isso não é sem consequência, interfere no convívio social, na interação e qualidade dos relacionamentos, restringe a comunicação, o olhar, o toque, suprime a separação de tempo de trabalho e tempo de lazer e família, e interrompe o momento presente a cada nova mensagem que chega, a cada toque do celular.
Como pais e educadores podem orientar suas condutas em relação ao uso de dispositivos digitais pelas crianças? Onde podem se ancorar de maneira segura e coerente para limitar o tempo de tela das crianças?
Para rever o mundo que hoje é apresentado à criança e orientar este cenário de tantas inquietações e incertezas que temos testemunhado, é preciso estabelecer princípios e procedimentos éticos capazes de nortear o processo educativo da criança.
A educação infantil tanto no âmbito familiar quanto escolar, precisa de bases sólidas onde se sustentar. Compreender a natureza da criança, suas características e necessidades biopsicossociais espirituais frente às etapas do seu desenvolvimento, é o ponto de partida proposto para trilhar de maneira segura o caminho da desafiadora tarefa da educação da criança nos dias de hoje.
É importante respeitar as etapas do desenvolvimento infantil para a formação de indivíduos saudáveis e autônomos, compreendendo que cada fase é base para a próxima, e todas elas exigem um trabalho interno da criança, além de estímulos saudáveis do mundo externo.
É necessário entender que a criança apreende o mundo e aprende de forma gradual, ao nível de sua compreensão, segundo uma grandeza interna de prioridades, ordenadas pelos conhecimentos já assimilados por ela.
A infância é um período de desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e social. A criança trabalha intensamente para a construção do seu vir a ser diante do mundo.
Espera-se que pais e educadores atuem como facilitadores desse processo, pois o ser humano depende do ambiente em que vive, do incentivo que recebe e da interação com outros seres humanos para se desenvolver.
Dessa forma o ambiente, constituído por tudo aquilo que traz estímulo aos cinco sentidos, deve ser amigável à criança, passando pelo tato, no toque de objetos naturais, até aromas, imagens, sons, que não agridam a criança e que a façam vivenciar experiências genuinamente humanas.
Raffi Cavoukian, ativista da infância, fundador do Centre for Child Honouring, diz que nenhuma tela de computador vai dar a criança uma brisa suave de verão, isso é impossível. O aroma da primavera não vai vir da tela. Nenhum toque que realmente emocione virá de representações artificiais do mundo. Aprender no mundo real é primordial para uma experiência positiva e formativa.
Os estímulos advindos do mundo digital, artificial, são pobres frente à diversidade e qualidade de estímulos que a criança necessita.
A criança aprende melhor e de forma mais eficiente com brincadeiras e interagindo com os pais, cuidadores, professores e amigos no mundo real e tridimensional. Se ela passar um tempo muito extenso em atividades tecnológicas, poderá comprometer habilidades sociais, de comunicação e a inteligência comportamental.
Lembremo-nos, na ausência do outro, o homem não se constrói homem. Somos os maiores responsáveis pelo estabelecimento do elo emocional entre a geração de nativos digitais e o mundo vida, e igualmente responsáveis por desenvolver uma consciência que entenda a cultura da infância como uma etapa particular do processo de iniciação do humano de forma a garantir a sobrevivência da nossa espécie.
Fonte: Aleteia