O esporte que transformou a Rocinha
São 9h07 de um sábado de junho. O sol ameaça sair e a garoa fina, praticamente invisível, insiste em espantar os mais preguiçosos. A molecada espera sentada nas arquibancadas da quadra poliesportiva do Complexo Esportivo da Rocinha o momento da checagem final do piso pelos professores. Outros, com medo da chuva, preferiram ficar em casa.
“Vamos! Vamos! Vamos!”, diz o professor Rodrigo Kanbach, coordenador dos trabalhos na parceria entre a NBA e a Secretaria Estadual de Esporte, Lazer e Juventude do Rio de Janeiro. A iniciativa rendeu a uma das maiores favelas do Rio o passaporte de crianças e adolescentes para escolas de desenvolvimento do melhor basquete do planeta.
“Cadê o tênis?”, “cadê o meião?” e “vai ficar aí esperando?” foram outras frases ditas pelo professor Rodrigo. Nenhuma, é bom pontuar, com rispidez ou qualquer ponta de ironia. A ideia era começar a aula o quanto antes para que não houvesse atraso. Faz parte da disciplina exigida pelo basquete. Mas também porque se a quadra demorar para ser liberada, atrapalha o futebol de salão dos moradores da Rocinha. Comunidade é assim: se extrapolar, alguém acaba prejudicado.
“Temos quatro máximas aqui dentro: liderança, respeito, trabalho em equipe e vida saudável. É tentar que eles passem isso para os amigos e para a família. É uma vida coletiva em que um cuida do outro”, conta o professor.
Segundo ele, a aceitação do projeto – que ainda engatinha – foi excelente entre os pequenos. “Não tivemos nenhum problema de precisar levantar a voz com nenhum garoto que estava brincando. Esportivamente, pelos anos do Complexo, os jovens daqui têm muito esse respeito.”
A Rocinha é um mundo à parte. E, bem, um mundo bastante populoso. Segundo o IBGE, havia 69.356 pessoas na comunidade em 2010. A conta está bem abaixo, segundo as lideranças comunitárias e o Viva Favela: eles acreditam em 165 mil moradores. Já a Secretaria Estadual de Obras estimava, em 2009, 101 mil moradores. Ninguém sabe ao certo, mas dá para dizer que a Rocinha abriga entre dois e três Maracanãs. Mas, quem sabe, em 2016, já não são quatro…
Luís Eduardo Braga, 14 anos, morador de Boiadeiro, dentro da própria Rocinha, é um dos que levam o treino esportivo a ferro e fogo. É verdade que ele tem muito jeito com a bola que quica. Bom controle, bom passe, bons dribles. Antes de chegar ao projeto da NBA, basquete para ele era só durante a Educação Física na escola. Mas aí já viu: era tabela capenga, aro torto e nem sempre a bola era adequada. Imagina a dificuldade para fazer a bola cair? “Basquete não é só diversão. É uma coisa que eu levo a sério e que vou tentar criar uma carreira em cima disso. Quero aprender mais um pouco, para entrar num clube e tentar uma vaga melhor”, me conta ele, numa das rápidas paradas em que consegui tirá-lo da quadra um pouquinho. “Faço tudo que me pedem. Mas respeito só quem me respeita”, diz, antes de virar as costas e voltar o treino de condução de bola.
A NBA fornece o treinamento para os professores, além de uniformes e equipamentos. Todos ostentam também o mesmo tênis, um modelo da Under Armour que ainda nem chegou às prateleiras. Quem por acaso não aparece com ele toma reprimenda. O espaço é igual para todos, afinal. Até mesmo as tabelas da quadra foram os gringos que trocaram. O governo estadual entrou com o espaço e idealizou a parceria.
Com jeito de garoto da turma do fundão, João Gabriel Gonzaga Dulce, 14 anos, ri fácil e diz que tira onda de surfista em São Conrado, praia das mais cultuadas da cidade olímpica. O basquete entrou na vida dele há quatro anos, mas um acidente quase tirou a bola laranja do caminho: “Quando comecei a jogar, pensei assim: ‘É melhor do que ficar na rua fazendo besteira’. Aos poucos passei a jogar bem e estou aqui. Pensei em parar por ter quebrado o braço. Doía muito! Perdi um campeonato, fiquei bravo e perdi a vontade. Agora com o projeto aqui na Rocinha, minha mãe me inscreveu e voltei”, conta.
Como tudo que envolve a liga americana, os números são audaciosos: o programa espera atingir mais de 6,5 milhões de crianças em 32 países. Com isso, juntam-se ao João Gabriel e ao Luís Eduardo as meninas. A Ashley Albuquerque tem 10 anos e uma paixão irremediável por Stephen Curry. O MVP (Most Valuable Player, o Jogador Mais Valioso) das últimas duas temporadas regulares da NBA é um dos motivos de fazê-la levantar cedo aos sábados e enfrentar até a garoa da manhã em que o HuffPost esteve por lá. “É o modo dele jogar, é muito habilidoso. E o carisma, né?”, revela. Antes da NBA – de Curry -, Ashley era mais interessada em vôlei e natação. Agora, as coisas mudaram. “Eu venho desde a primeira aula.”
Jéssica da Silva, 11 anos, é outra menina do jr.nba. Outra fã de Curry, diga-se de passagem. Filha de uma agente de saúde e de um comerciante, ela vive na Rocinha com três irmãs e um irmão. Foi tentar a sorte no basquete por incentivo da mãe e por assistir aos jogos da NBA em casa. Na contramão, precisou largar o judô para começar a frequentar as aulas de inglês. Ela conta que adora a Rocinha. “É uma comunidade boa. Não tem nada de diferente. Tem aqueles que são mais metidos e outros que não. Mas aqui as pessoas são mais ‘povão'”, diz. E o preconceito de quem não conhece a comunidade? O que você acha, Jéssica? “Vem aqui experimentar para ver como é bom. Passa uma semana aqui. É muito bom!”
Já ao final do treino, perto das 11h da manhã, retomo a conversa com o professor Rodrigo. Pergunto se já é possível ver algum talento despontando, mas ele parece dar de ombros. “É ótimo poder formar atletas. Mas o objetivo real não é esse. É formar cidadãos”, opina.
E as meninas? Nem a Ashley nem a Jéssica parecem se importar em jogar junto aos meninos. Mas isso pode ser bom para o desenvolvimento do esporte para elas? “São muito poucas oportunidades para as meninas. É um retrato do esporte nacional. Aqui temos uma turma mista, com meninos e meninas. A inclusão delas passa por todos estarem juntos, mas tem a diferença da força física e de os meninos tentarem isolá-las. Nosso papel como professor aqui é interferir. Quando isso acontece, paramos a aula e criamos exercícios que mostram que a bola precisa passar para todos para chegar até a cesta”, explica Rodrigo. “É que isso aqui também é para elas”. Ashley e Jéssica são só duas das muitas meninas que ainda vão correr pela quadra da Rocinha. Ainda bem.
Fonte: www.brasilpost.com.br